Remetente e destinatário são palavras que estão frequetemente presas ao meu vocabulário. Remeter algo com um destino amigo faz parte da minha vida de aspirante a escritor. "Mas ela é tua vizinha, pra que escrever uma carta?" foram palavras ditas por uma amiga minha, enquanto eu disse que estava indo deixar uma correspondência, ou melhor, uma carta na casa de outra amiga nossa e que, em poucos minutos, retornaria para a boa conversa.
Ela abriu os olhos, franziu a testa e me indagou de uma forma dura como se o critério fundamental para escrever aos bons amigos fosse estar a uma distância, de mais ou menos, alguns quilômetros. Mas pra mim não tem isso. Pode estar onde estiver, escrevo com maior prazer.
Tudo vira um belo motivo para uma boa carta. Bianca, minha amada amiga de grandes jornadas, deve ter um baú imenso cheio de cartas que escrevo pra ela. Mesmo ela morando ao meu lado, escrevo coisas confortantes, confissões, bilhetes carinhosos e um simples "Bom dia!". Costumo deixar essas cartas na casa dela às segundas. Quando a noite do domingo vai terminando, vou pisando de mansinho, respiro fundo e empurro a folhinha por entre as brechas da porta e o chão, e torço pra ela encontrar a cartinha lá, linda e bela esperando pelo seu acolhimento.
Tem as cartas que prometo e nunca chegam. Sou um irresponsável, nesse caso, e me faço de surdo à canção do Lenine que diz “escreveu remeta”. Minha cunhada viajou em Setembro para o exterior e eu falei baixinho no ouvido dela que iria escrever uma carta. Mas eu sinto aquela sensação estranha, a mão pesada, o peito dolorido. Era como se a saudade mandasse um aviso de “cedo demais”, “mantenha a calma”. Enquanto isso, segura as pontas, Carol.
Marília também é uma órfã de minhas amenidades em correspondência. Já perdi as contas de quantas vezes já anotei o endereço da Avenida Bultrins, que ela já mudou pra Chico Science, e nunca mandei nem um pacote de Big Big com as curiosidades nada curiosas. Mas vai chegar, Lila, tenha paciência com minhas leseiras.
Alberto Lima, cabra mais citado nesse blog, também é outro que gosto de trocar correspondência. Como ele mora em Paris, ainda não tive a audácia de enviar alguma coisa pra Champs Elysé. Vai que Sarkozy abre pra dá uma lida e descobre junto com Carla Bruni que Alberto é o cabra mais bacana de todo Recife, embaixador das amenidades e coisas pernambucanas em Paris. Deus o livre. Empunhai a bandeira de nossa confraria, Alberto, que um dia essa carta há de sentir o cheiro das cores verde e amarela tremulando em vossa mão na terra de Bonaparte.
Outra coisa que adoro fazer é emprestar livro. Mas livro é como remédio: precisa de uma bula para indicar como manipulá-lo. Por isso, quando vou emprestar um livro a alguém, como é o caso de Maria Paula – grande amiga estudante de Direito e estudante farrapeira de História - escrevo um bilhete-carta contando minhas sensações com o livro, o que eu absorvi de informação e o velho desejo de Boa leitura. Na situação de Paula eu tive a imensa honra de apresentar José Saramago, aquela alma branda, um poço de calma. Me senti extremamente orgulhoso quando ela disse “Obrigado, adorei o Saramago”. É quase que o mesmo tom de um “Adorei esse teu amigo.” É de arrepiar as lombrigas.
Esse cacoete de buscar uma caneta Bic e um pedaço de papel pautado da Tilibra eu peguei com Edu, um companheiro do movimento estudantil e que me mostrou a Bahia de Jorge Amado. Se não fosse aquela letrinha deitada, parecida com o itálico do Word, eu não entenderia as diversas faces da Bahia e do próprio Jorge Amado. Lembro que em meio a tantas declarações efusivas de admiração ao Baiano, havia uma reticência apontando que a melhor parte da obra dele era quando esteve sob tutela comunista. Edu é um homem de fortes ideais, amante da luta do povo e corajoso para com a luta. Escolheu pra vida o caminho cigano da revolução. Hoje exerce sua labuta em Alagoas, construindo passos por um Brasil melhor. Como ele mesmo costumava terminar, saudações revolucionárias, companheiro.
O que seria de mim e dessas pessoas sem uma carta? Ela, pra mim, não é o início, nem o fim. É o meio. É essa ponte entre uma alma e outra, erguida em pilares de sentimentos bons, humanos, de paz, suavidade, de inteligência franciscana. É inenarrável o bem que um pedaço de papel contendo algumas gotas de palavras confortantes faz ao coração solitário, numa tarde qualquer, em plena praça do Diário, ou em alguma repartição pública, envolvido em falsas cortesias e atividades diversas, ou em um ônibus lotado, quente e parado num engarrafamento.
É uma pena que as pessoas tenham em mente a pobre concepção de que carta é somente de amor. Não é tão somente "de amor". Existe aquela que mata uma saudade; a que nos enche de alegria logo cedo, de um amigo que mora ao lado, mas continua nos escrevendo; tem a do assunto sério de um irmão que mora longe; tem a carta repleta de verbos revoltados de um amigo que perdeu o emprego, ou brigou com a namorada; tem aquela carta que é mais um aviso: “amigo, escrevo pra dizer que chego em breve"; e tem as cartas que são "metacartas", aquelas se explicam por que chegaram ali e o porquê de terem sido feitas.
A estrutura de uma carta pra mim não tem estrutura. Ela tem que ser feita a gosto do escritor. Não há limites de linhas, nem de expressões a serem usadas. Quanto mais emocionante for, mais carta é. E a forma de fazer não exige nada de máquinas ou computadores: a velha canetinha bic, ou aquela de ponta fina, e tudo está no trilho certo de uma boa carta. O que importa muito mais é o que ela representa, e não o que ela é fisicamente. As cartas sempre tocam o nosso coração, independentemente da emoção da notícia que ela nos traz. Escrever carta é bom, melhor ainda é receber.
Por Afonso Bezerra.