terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Sobre carta.

Remetente e destinatário são palavras que estão frequetemente presas ao meu vocabulário. Remeter algo com um destino amigo faz parte da minha vida de aspirante a escritor. "Mas ela é tua vizinha, pra que escrever uma carta?" foram palavras ditas por uma amiga minha, enquanto eu disse que estava indo deixar uma correspondência, ou melhor, uma carta na casa de outra amiga nossa e que, em poucos minutos, retornaria para a boa conversa.

Ela abriu os olhos, franziu a testa e me indagou de uma forma dura como se o critério fundamental para escrever aos bons amigos fosse estar a uma distância, de mais ou menos, alguns quilômetros. Mas pra mim não tem isso. Pode estar onde estiver, escrevo com maior prazer.

Tudo vira um belo motivo para uma boa carta. Bianca, minha amada amiga de grandes jornadas, deve ter um baú imenso cheio de cartas que escrevo pra ela. Mesmo ela morando ao meu lado, escrevo coisas confortantes, confissões, bilhetes carinhosos e um simples "Bom dia!". Costumo deixar essas cartas na casa dela às segundas. Quando a noite do domingo vai terminando, vou pisando de mansinho, respiro fundo e empurro a folhinha por entre as brechas da porta e o chão, e torço pra ela encontrar a cartinha lá, linda e bela esperando pelo seu acolhimento.

Tem as cartas que prometo e nunca chegam. Sou um irresponsável, nesse caso, e me faço de surdo à canção do Lenine que diz “escreveu remeta”. Minha cunhada viajou em Setembro para o exterior e eu falei baixinho no ouvido dela que iria escrever uma carta. Mas eu sinto aquela sensação estranha, a mão pesada, o peito dolorido. Era como se a saudade mandasse um aviso de “cedo demais”, “mantenha a calma”. Enquanto isso, segura as pontas, Carol.

Marília também é uma órfã de minhas amenidades em correspondência. Já perdi as contas de quantas vezes já anotei o endereço da Avenida Bultrins, que ela já mudou pra Chico Science, e nunca mandei nem um pacote de Big Big com as curiosidades nada curiosas. Mas vai chegar, Lila, tenha paciência com minhas leseiras.

Alberto Lima, cabra mais citado nesse blog, também é outro que gosto de trocar correspondência. Como ele mora em Paris, ainda não tive a audácia de enviar alguma coisa pra Champs Elysé. Vai que Sarkozy abre pra dá uma lida e descobre junto com Carla Bruni que Alberto é o cabra mais bacana de todo Recife, embaixador das amenidades e coisas pernambucanas em Paris. Deus o livre. Empunhai a bandeira de nossa confraria, Alberto, que um dia essa carta há de sentir o cheiro das cores verde e amarela tremulando em vossa mão na terra de Bonaparte.


Outra coisa que adoro fazer é emprestar livro. Mas livro é como remédio: precisa de uma bula para indicar como manipulá-lo. Por isso, quando vou emprestar um livro a alguém, como é o caso de Maria Paula – grande amiga estudante de Direito e estudante farrapeira de História - escrevo um bilhete-carta contando minhas sensações com o livro, o que eu absorvi de informação e o velho desejo de Boa leitura. Na situação de Paula eu tive a imensa honra de apresentar José Saramago, aquela alma branda, um poço de calma. Me senti extremamente orgulhoso quando ela disse “Obrigado, adorei o Saramago”. É quase que o mesmo tom de um “Adorei esse teu amigo.” É de arrepiar as lombrigas.

Esse cacoete de buscar uma caneta Bic e um pedaço de papel pautado da Tilibra eu peguei com Edu, um companheiro do movimento estudantil e que me mostrou a Bahia de Jorge Amado. Se não fosse aquela letrinha deitada, parecida com o itálico do Word, eu não entenderia as diversas faces da Bahia e do próprio Jorge Amado. Lembro que em meio a tantas declarações efusivas de admiração ao Baiano, havia uma reticência apontando que a melhor parte da obra dele era quando esteve sob tutela comunista. Edu é um homem de fortes ideais, amante da luta do povo e corajoso para com a luta. Escolheu pra vida o caminho cigano da revolução. Hoje exerce sua labuta em Alagoas, construindo passos por um Brasil melhor. Como ele mesmo costumava terminar, saudações revolucionárias, companheiro.

O que seria de mim e dessas pessoas sem uma carta? Ela, pra mim, não é o início, nem o fim. É o meio. É essa ponte entre uma alma e outra, erguida em pilares de sentimentos bons, humanos, de paz, suavidade, de inteligência franciscana. É inenarrável o bem que um pedaço de papel contendo algumas gotas de palavras confortantes faz ao coração solitário, numa tarde qualquer, em plena praça do Diário, ou em alguma repartição pública, envolvido em falsas cortesias e atividades diversas, ou em um ônibus lotado, quente e parado num engarrafamento.

É uma pena que as pessoas tenham em mente a pobre concepção de que carta é somente de amor. Não é tão somente "de amor". Existe aquela que mata uma saudade; a que nos enche de alegria logo cedo, de um amigo que mora ao lado, mas continua nos escrevendo; tem a do assunto sério de um irmão que mora longe; tem a carta repleta de verbos revoltados de um amigo que perdeu o emprego, ou brigou com a namorada; tem aquela carta que é mais um aviso: “amigo, escrevo pra dizer que chego em breve"; e tem as cartas que são "metacartas", aquelas se explicam por que chegaram ali e o porquê de terem sido feitas.

A estrutura de uma carta pra mim não tem estrutura. Ela tem que ser feita a gosto do escritor. Não há limites de linhas, nem de expressões a serem usadas. Quanto mais emocionante for, mais carta é. E a forma de fazer não exige nada de máquinas ou computadores: a velha canetinha bic, ou aquela de ponta fina, e tudo está no trilho certo de uma boa carta. O que importa muito mais é o que ela representa, e não o que ela é fisicamente. As cartas sempre tocam o nosso coração, independentemente da emoção da notícia que ela nos traz. Escrever carta é bom, melhor ainda é receber.

Por Afonso Bezerra.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Minha odisséia nos ônibus do Recife.

Andar de ônibus no Recife é uma Odisséia, é um plural de problema. A cidade é mal sinalizada, os ônibus são péssimos e a passagem cara pacas(2 Reais o Vale A, absurdo). os motoristas, em geral, são malcriados. Olhe, só andando!

Teve uma vez que, por motivos de leseira, eu demorei pra chegar até a porta e o motorista arrancou o carro achando que eu não iria subir. Imediatamente, lancei a mão nervoso e pedi parada mais uma vez. Ele abriu a porta puto, depois de uma freada bruta e alfinetou: “Tá pensando que essa porra é táxi?”.

Lembrei de Alberto Lima contando suas histórias de passageiro do Engenho do Meio, relembrando os motoristas brutos. Ele é da época que se o cabra pedisse parada e demorasse pra descer, o motorista gritava enfurecido: “Tá pensando que essa porra é escorrego, pra descer sentado, seu porra? Tempos que esses condutores dos coletivos reagiam a exploração com a mesma intensidade de gentileza e tinham um estereótipo de gordura flácida, um bigode tingido pela nicotina dos cigarros do intervalo e sempre um dente bem palitado por um “Gina” já roído na cabeça.

Apesar dessa brutalidade está restrita ao tempo passado, ainda hoje é evidente que motorista queima parada pra estudante e idoso, principalmente idoso; que eles não dão Bom dia, etc. Mas isso é um problema que a raiz é bem profunda. Como diria um amigo meu, é culpa do sistema. Mas, mesmo com todos esses problemas do transporte coletivo, eu tenho uma simpatia por eles. Gosto de andar de ônibus, de pensar, de entender sua rota, de ouvir suas conversas, de compreender seus usuários.

Aqui em Recife eu tenho meus ônibus de estimação. O Jardim São Paulo/Abdias de Carvalho é o mais chegado e freqüente, me deixa na porta de casa, mas o Totó quebra um galho depois das farras, naquele Bacurau das 2 da manhã, no cais Santa Rita. O Curado, em sua diversa numeração (1, 2, 4), me acompanha nas horas de pico. Nas pressas do cotidiano, um Curado cai bem.

Mas quando pego, por exemplo, um Alto Santa Isabel, Casa Amarela/Rosa e Silva, a porca torce o rabo, porque me perco naquelas ruas idênticas da Zona Norte do Recife. Nunca sei dizer quem é Av. 17 de Agosto e Estrada do encanamento. Confundo sempre Jaqueira com Praça de Casa Forte. O que me salva é a Rosa e Silva de braços dados com a Rui Barbosa, duas figuras que me conduzem naquela área.

Em Olinda eu tenho até meus truques, mas não sei se Caenga é um Bairro ou uma referência para uma espécie de Circular de Olinda. Ele vai pra todos os lugares. Sempre tem um Caenga/ Algum Lugar. Se com ônibus me confundo, imagine com paradas. Em Boa Viagem mesmo, sempre desço uma parada antes ou uma depois. Quando tinha as plaquinhas que enumeram as paradas eu sabia que a 12 era do Shopping, que a 9 era a da Imobiliária quando, por descuido, eu deixava vencer o boleto do aluguel e ia lá pagar. Mas, ultimamente, a coisa tá feia. Sempre tenho que recorrer ao cobrador, pra me livrar de um vexame ou de uma caminhada desnecessária.

Nunca fui pro jogo do Santa de ônibus. Sempre aparecia uma carona, uma galera pra rachar o táxi, mas eu fico espiando quais coletivos se encaminham pra aquelas bandas do Arruda, da Rodinha, Cajueiro, mas nunca utilizei. No Festival de Inverno de Garanhus, por uma desventura da vida, eu e Lia pegamos uma casa com os amigos um tanto longe do foco da festa. Se não fosse o Mundaú, a gente tava lascado. Era um ônibus do grande, conservador, se pagava em dinheiro e o cobrador ficava na porta de trás, tipo de ônibus que preserva suas origens. Tinha também o modelo Geladinho, que era guiado por um motorista gente fina. Na volta da farra, ele deixava a gente em frente de casa, aos agradecimentos completamente embriagados.

Eu já ia esquecendo do meu pimpolho CDU/TORRÕES-VIA SAN MARTIN. Esse é tipo paciência. Me leva e traz todos os dias pra UFPE. Demora 30 minutos pra passar, mas, em contrapartida, vou sentadinho lendo minhas fichas, meus livros, pensando na vida, levando uns ventos na fuça. Tem ônibus que nasceu pra você pensar na vida. O CDU/TORRÕES é um deles.

Tem também aqueles pra você colocar conversa em dia com um amigo do exterior – Alô, Carol, cunhada querida. Quando tu chegar a gente bate uma prosa no Rio Doce/ CDU. Esse aí você briga, chora, faz as pazes, volta a brigar, fala da vida dos outros, do problema do Brasil, da estética do romance, desce pro debate sobre catingas de peido, nomes de bunda, depois reflete sobre as letras de Chico, faz silêncio, dorme, acorda e ele ainda tá na Encruzilhada, o que corresponde ao meio do caminho entre a UFPE e Olinda. O percurso é tão longo e demorado que, em final de ano, os freqüentadores assíduos fazem um amigo secreto, com direito a bolo, guaraná e participação do motorista e cobrador.

Eu fico com pena dos amigos da Rural, da galera da UFPE que tem que enfrentar um Barro/Macaxeira, tipo de linha que detesta solidão. Eu só vejo o ônibus abarrotado de gente, uma loucura. Já vi nego sair com a cara amassada na porta. É uma Odisséia. Mas andar de ônibus é assim mesmo: é dureza, sacrifício na certa, mas tem suas coisas positivas, isso tem.

Pra todo mundo que anda de busão e paga essa tarifa cara. Vamos lutar para baixar o preço!!!

Por Afonso Bezerra.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A História aos meus olhos e a cidade concreta.

Desde que entrei na faculdade de História estreitei minhas conversas com Alberto Lima, um jornalista grande amigo de meu pai e que agora concede parte de seu tempo em reflexões sobre a vida via e-mail comigo. Ele é um cara muito bacana, atencioso, gosta de dar carinho, de entusiasmar o amigo, é crítico quando preciso, infelizmente torce pelo Náutico, mas, em contrapartida, é casado com Carol, uma brasiliense arretada, gente fina, mãe exemplar do João e do Pedro, que tem um faro fino pra coisas boas dessa vida.

Entre um e-mail e outro, Alberto soltou a possibilidade de uma visita a Brasília. E lá fui eu, pela primeira vez viajando num TAM que balançou mais que o balança mas não cai dos Aflitos em dia de clássico das emoções. Ao chegar ao aeroporto JK, cheirei aquele clima de Brasília pra renovar o pulmão, estiquei os braços e as pernas e fui expresso dá uma fuçada na cidade antes de encontrar com Alberto e Carol. Em segredo, queria mesmo adentrar em Brasília e ver como funcionava o centro do poder do meu país.

Acabei descobrindo outras belezas e outras faces de Brasília. A princípio, me assustei um pouco. Fui motivado pela posse e caía uma chuva desagradável. Ela poderia afogar os meus planos de ver a Dilma enrolada na faixa verde e amarela. O taxista que me encaminhou nas longas avenidas do DF apontou o seu termômetro social para a posse e alfinetou: “Pelo jeito, ela não vai desfilar em carro aberto”, disse o motorista um tanto silencioso, que só respondia o necessário. E era somente o necessário que se ouvia até então. O táxi, o jornaleiro, o rapaz do hotel, meu vizinho de quarto falavam apenas o essencial.

Cheguei ao Hotel às 10h do dia 31. Me organizei e abri a varanda que dava para o Congresso Federal. Linda paisagem. Um verde liso contrastava com o concreto dos altos prédios do plano piloto. Passei rapidamente num shopping e vi o quanto rigorosos com o trânsito eles são. Os carros passavam a 100km/h e o pedestre, pacientemente, espera o sinal fechar, e sempre na faixa. Na fila do restaurante do shopping percebi que as mulheres têm o mesmo tom de voz: algo aberto, efusivo e engraçado. Mas era lindo o tom da voz.

Essa dureza Brasiliense é histórica. Em cinco décadas de existência, o DF é habitado por muita gente de fora. Não há aquele bairrismo, um apego fraterno como nós temos com o Recife. Apesar de andar bastante para tirar fotos da noite do Réveillon, meu objetivo máximo era o dia primeiro, a posse da primeira mulher presidente. No dia 31, não me prolonguei nos assuntos etílicos e me guardei para agüentar o rojão do dia seguinte. Rolou um baita festão na casa dos pais da Carol. Preferi o descanso e encontrá-los no outro dia, na posse.

O tempo me deu um drible daqueles. Me acordou com chuva e, no meio do caminho, me deu um abraço caloroso. Um sol repentino apareceu e me queimou todo enquanto registrava a diversidade de gente que chegava à Esplanada dos Ministérios, para ver Dilma empossada. Foi lindo aquele vermelhidão petista. Cada um com sua bandeira, boné, camisa, mas, sobretudo, todos carregavam uma esperança.

Já próximo do Congresso, a organização do evento promoveu um encontro de culturas, uma coisa linda. Cinco tendas representando as regiões brasileiras. Uma comunhão de expressões artísticas deslumbrante. Mais adiante um pouco, quando meu relógio marcava 14h, eu já estava sentadinho nas rampas do Congresso esperando Dilma no Rolls Royce, que foi doado pela Rainha Elizabeth. O sol me torrava, mas eu desconfiava da chuva. Olhava assim para o horizonte e via aquelas nuvens pretas se aproximando. O Rádio me avisou categórico: “Dilma sai da Granja do torto e vem desfilando em carro fechado em virtude das fortes chuvas em Brasília”.Era só o que me faltava, e não faltou. Tomei um baita banho e, na descida do Congresso, não vi o xauzinho da presidenta. Não desisti.

Peguei a tangente do Congresso e caí na praça dos três poderes. A chuva deu uma trégua, mas ficou intimidando o sol. Ficou aquele mormaço tabacudo, que nem esfria e nem esquenta. Mas a cerimônia ficou mais confortável. Tinha um telão na praça. Deu pra ver e ouvir o primeiro discurso de Dilma como Presidente da República Federativa do Brasil. “Erradicar a miséria, proteger os mais frágeis e desenvolver o Brasil”. Boa essa parte, mas melhor ainda foi quando ela engasgou e chorou lembrando-se de seus companheiros que tombaram na Guerrilha porque tinham um sonho para o Brasil. Ponto para Dilma e muita emoção pra mim. Somente nessa parte ela ganhou o mandato. Teremos uma governante de sonhos, e não só de metas.

Embora técnico e demorado, Dilma fez um discurso razoável. Mais instigante ainda foram os atos em silêncio. O Alberto lembrou bem a cena mais interessante do dia, quando ela saiu do Congresso e o representante das forças armadas prestou continência à Dilminha. Me emocionei todo quando vi e mais ainda quando o Beto me lembrou, daquele jeito dele, cuidadoso com as palavras. Aquela cena me marcou de forma indescritível. Imaginem: é uma ex-guerrilheira, que foi estupidamente torturada pelos militares nos anos 60 e 70, reconhecida como a maior autoridade do país pelos mesmos fardados que a atormentaram no passado. A memória histórica é fenomenal. Naquele momento eu tive a sensação de que a História estava aos meus olhos e me emocionei verdadeiramente. Em poucas palavras, foi lindo.

À noitinha, mesmo cansado, fui à casa de um casal pernambucano que é super amigo do Alberto e da Carol, que são duas pessoas sensacionais. Ao chegar lá, uma conversa bem pernambucana misturada com Brasília. Pessoas legais, conversas fluentes. As histórias longas e interessantes do Alberto, a atenção, preocupação e paixão da Carol em nos inserir no contexto de Brasília, os palpites dos amigos deles sobre política, economia em dia de posse, um macarrão com carne moída que achei maravilhoso e, por fim, um sono arrebatador sobre os livros do Chico Buarque – presentes da viagem – depois de um dia histórico, em todos os momentos.

E Brasília é linda, basta conhecê-la mais pacientemente. Ela guarda com carinho seu povo, acolhe em silêncio. Na minha mente, Brasília é um lugar amigo, de paz, suave, mas que pouco se sabe Brasil afora. Foi muito bom estar lá, nesse momento tão importante para História do Brasil. Não podia ficar em silêncio diante da beleza e do carinho.

Para Alberto e Carol, João e Pedro, amigos que me acolheram carinhosamente em Brasília.


Por Afonso Bezerra

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Onde a globalização é figurante

A verdade é que toda vez que começo um novo texto, caio no poço da cidade grande em que moro. Falar sobre o quê? Sempre as mesmas caras, sempre os mesmos itinerários: carros carros carros carros carros pessoas pessoas carros acidentes mortes carros carros carros. É preciso dar um basta nessa condição de metrópole. Vamos deixar a metrópole e suas mesmices para os que, como eu antes de fechar a janela e ouvir o silêncio, ainda não descobriram o abismo em que estão.

Uma vez, fiz uma viagem. Na verdade, um passeio, já que meu destino era uma cidadezinha chamada Lagoa do Carro (nome bem irônico, aliás), no interior de Pernambuco, a pouco mais de uma hora de Recife. Ao chegar na cidade, encontramos um senhor de idade, cujo nome não me lembro, dono do terreno ao qual estávamos indo. Aparentava ter, no mínimo, 70 anos. E enquanto nós, meros mortais submissos à tecnologia, estávamos enfiados dentro de um carro com ar-condicionado para fugir do sol das onze horas, o homem foi até o terreno de uma forma simples e rápida: a cavalo.

O lugar era longe, a estrada de terra batida era desigual, o homem a cavalo estava muito à nossa frente. Eram várias porteiras de madeira – ele abria e fechava cada uma delas sem nem descer do bicho – e muitas montanhas, mas conseguimos chegar ainda a carro (Amém. Ar condicionado!) na casinha de pau-a-pique onde o senhor morava. A composição da casa era o mais simples possível: um banheiro, uma cozinha, um quarto, uma sala. Um fogão, uma geladeira, uma cama, uma televisão e um som. Sofá? Quem precisa de sofá quando existem redes? Supermercado? A alimentação saudável estava toda lá fora, nas plantações. Água encanada? Havia a nascente de um rio a poucos metros da casa.

Me espantou o fato de que a artificialidade de um mundo tão tecnológico, tão científico, tão encolhido pela globalização, por assim dizer, não afetou aquelas pessoas. É uma vida tão simples, tão tranqüila. O conforto deixa a desejar, obviamente, levando em conta o padrão de vida da cidade grande. Mas a simplicidade – ou mais: a felicidade – estampada nos olhos daquele povo é conforto de sobra pro coração.

(Penélope Araújo)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Como explicar o medo aos meus filhos?

Antes de qualquer coisa, gostaria de informar que não tenho filhos, mas pretendo tê-los. Acho linda essa experiência, apesar de todos os dramas que dela fazem parte. A criação de um ser humano buscando sempre ensiná-lo a liberdade, os conceitos, a vida em sua visão ampla (apesar de ser no seu humilde ponto de vista) é uma sensação mágica.

Sempre que penso sobre alguma coisa indelicada, me pergunto como explicaria aos meus filhos. Essa relação paterna de ser a máxima referência é um exercício contínuo sobre a formação de seu próprio caráter, afinal de contas, outra pessoa tomará essas posições como uma verdade absoluta, nos levará a sério e, por eles, vale a pena pensar um pouco mais.

O tema da vez é o medo. Me cansei das definições do Datena sobre o que seria o medo. Elas são sensacionalistas demais. O significado de medo dado pelos meus colunistas preferidos das minhas revistas preferidas viajou demais na retórica, não gostei. Todos são categóricos, inflamados, apressados e sempre buscam um herói que supera a idéia de medo. E para formar esse padrão heróico anti-medo, nos ensinam uma fórmula infalível de como se livrar das agruras modernas. Nada. Sinto-me preso com tantos códigos: de conduta, eleitoral, civil, condominial... Chega!

Foi um francês quem me trouxe um esclarecimento sobre o medo. Ele, simplesmente, existe. Causa-nos angústia, respirações aceleradas, o pensamento pifa e a racionalidade (tão defendida ultimamente) se esfarela como a farofa que sobrou do almoço. Jean Delumeau já me disse: todas as sociedades tiveram medo e, paralelamente, construíram seus heróis. Mais adiante, ele complementa dizendo que há uma diferença entre medo e covardia.

Ser medroso é um ato, por si só, heróico. É reconhecer suas limitações, ser verdadeiro consigo mesmo. O medo nos ensina a não criar personagens sobre a nossa personalidade tão frágil. Mas a condição humana tem dessas coisas: gosta de impor certas aptidões, de nos enlouquecer. E a nossa sociedade que Duby chamou de espetacular vai querer nos apresentar como o resistente ao medo e conhecedor puro de todos os dramas, ou seja, nos faz covardes para nós mesmos. Porque covardia é isso: fingir-se a si mesmo, tropeçar em suas verdades ao tentar construir mentiras para aparentar-se melhor ao mundo lá fora.

Numa era movida ao terrorismo, apresentar-se imune ao medo é um sinal de boa relação com os próprios dramas. Entretanto, o que gostaria de passar ao meu filho é o seguinte: esqueça os outros e sinta o seu medo e faça com que ele seja reconhecido e respeitado.

Não ultrapasse seus limites, não queira sentir seu superego. Encare o inusitado, faça o simples e preze por sua autonomia. No fundo, você verá que ela é muito cara. Muito. A ponto de não ser mensurada financeiramente. E quero contar mais ainda ao meu filho: que tenho medo de sapo, de viajar de avião, de não achar o caminho certo nas ruas do Recife e ver meu filho perdido por causa do medo do medo que ele tem.


Por Afonso Bezerra.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Como se fosse fevereiro.

A banda no meio do percurso atacou de “Deixa o frevo rolar, eu só quero saber...” e todos foram aos gritos, naquele empurra – empurra natural do carnaval. Eu estava fantasiado de Bobo da corte e me infiltrei na alegria do Recife para espantar o banzo do fim do casamento. Muita cerveja, muita dor de cotovelo, conversas afogadas e nada de a dor passar. Ela apenas despertava mais tarde no outro dia por causa da ressaca.

Na terça-feira de carnaval, bem dizer o último dia da folia de momo no Recife, eu acordei com uma tremenda dor de cabeça. O despertador apitava alto, minha vista embaçada se perdia sem os óculos. Quanto mais eu me esticava para desligar o som irritante, mais tensa era dor na cabeça. Consegui abrir a vista em frente ao espelho e vi que em meu rosto estava a marca de que eu havia me rendido às dores da solidão. Tomei um café forte e fui me certificar se hoje alguém iria pular carnaval na cidade.

O João estava viajando. A Neide, secretária da empresa, resolveu brincar em Olinda durante o dia e provavelmente vai chegar entregue no final da tarde. Marcelo e a esposa vão brincar, mas estão felizes com o casório, eu não iria estragar uma lua de mel tão alegre. Até porque o casamento que supera o carnaval está fadado ao “felizes para sempre”. Sorri em frente ao espelho e vi que minha sagacidade estava um pouco além do normal. Tudo que fosse em relação ao casamento, eu destilava um veneno raivoso.

O tempo passou e as orquestras, algumas pequenas, outras irritantes, já afinavam o tom na Avenida. Abri a janela da varanda que dava para o Recife Antigo e, de longe, observava o folião chegando ao Recife, se apertando na Guararapes e se entregando ao passo nas ruas antigas do Bairro do Recife. Tinha um José de bermuda que se encantava com a festa. O Mário, que é aposentado, gastando o dinheiro da aposentadoria como vingança da empresa. A Janete, a empregada doméstica de Boa Viagem, enchia a cara de cachaça como se afogasse a alienação do trabalho e a exaustão do serviço que lhe consumia. As três virgens moças estreavam a liberdade no carnaval do Recife e pulavam de mãos dadas atraindo olhares dos homens que passavam como se fossem grandes vedetes. E eu da varanda, no décimo andar, guardando a dor do fim podendo fazer um recomeço.

Vesti uma camisa, pus uma bermuda como o José, peguei um dinheiro igual ao que o Mário gastava e saí alegre como a Janete, embevecido como as três virgens moças. Parti como se aquilo fosse novidade. O vento do Recife batia no meu focinho, como se espantasse a solidão, enquanto eu atravessava a ponte Maurício de Nassau. A Mauricéia Desvairada estava sorridente com suas fantasias, as pontes vestidas de um colorido marcante e o povo coberto de euforia como um anfitrião se embeleza ao visitante. No meio da rua do Bom Jesus, a orquestra atacou de “Deixa o frevo rolar, eu só quero saber...” e eu enlouqueci. Pulei, dancei e deixei de lado os dedinhos e abri a dobradiça no meio multidão como se a rua fosse o meu palco. E fui junto com o povo, marcando a cadência do frevo no arrastado do chinelo. Era Vassourinhas, Hino do Elefante, Madeira do Rosarinho. Cantava todos os frevos como se fosse a música dos meus sonhos, da minha vida.

As ruas iam passando, o bloco me arrastava e eu ia me encantando. Não tinha medo de me perder porque sou como o poeta Samarone já dizia: "Recife - cidade que reconheço somente passando as mãos pelas paredes." Assim, fui tateando os bares, as ruas, o povo.

Na minha frente, uma moça fotografava o bloco como se fosse o último e como a terça fosse acabar ali, naquele instante. Mas sua alegria era tanta que contagiou a todos. Cada clique era uma festa. Depois ela parou, guardou a máquina e ficou na minha frente pulando freneticamente ao som do frevo. De repente, a orquestra atacou de “Olha que eu conheço essa cara...” e todos se apertaram na curva com a Praça do Arsenal.

Ela ficou bem na minha frente. Vez ou outra me olhava, me sorria e se desculpava dos pisões. Eu nem desculpava, agradecia. Diante daquela beleza me deitaria como se fosse um pano de chão ou uma asfaltada avenida, pra que ela pudesse frevar. O cheiro do cabelo dela me encantava e assim eu ia até as estrelas de felicidade. O carnaval era radiante.

Quando estávamos fazendo a segunda volta na Praça do Arsenal, comecei a conversar com ela me utilizando da letra da canção. “Vem comigo e toma a chave do meu coração, porque eu já entrei no clima. Deixa eu sair no teu bloco, me abraça e me beija, me faça feliz”. Nesse meio termo de cantadas e frases plagiadas, a orquestra aumentou o som falando do sol, da praça, do amor, da saudade e eu não resisti e dei-lhe um forte abraço. Ela segurou na minha mão, me sorriu e continuou cantando frevo. Apressei meu passo para seguir junto ao seu corpo como se fosse namorado. No final do bloco, a beijei como se fosse amante, com uma alegria como se fosse fevereiro.

Sentamos no marco zero e o vento balançava seus cabelos. Fazia um frio como se fosse agosto. Continuei beijando-a intensamente, esquentando seu corpo no meu. O dia foi nascendo e o sol nos clareando como se fossemos artistas e o marco zero um grande palco. Com o dia já de pé, fomos dormir como se fossemos casados e acordamos como se tivessemos esquecido que a dor da separação havia doído. O frevo nos trouxe de volta para o grande amor.


Por Afonso Bezerra.